terça-feira, 28 de setembro de 2010

Hoje II


Queria ter todo o tempo do mundo, todas as horas perdidas para conseguir te conhecer melhor, para não andar sempre com pressa por suas ruas esburacadas, por suas avenidas constantemente recapeadas. Hoje quero a sua calma de uma tarde chuvosa, como se isso não fosse acarretar em transtornos e inundações, quero andar sem destino por suas pontes enumeradas, que demonstram toda a sua impessoalidade, sua falta de personalidade. Com tudo misturado assim, uns andam com pressa, outros não andam, uns têm destino, obstinados sabem exatamente o que querem.

Hoje não. Hoje quero te conhecer por inteiro, quero saber quais são as suas mais íngremes curvas e as suas mais escorregadias descidas. Quero subir no ponto mais alto que se tem para olhá-la de cima e me sentir maior, pelo menos hoje, não queria me sentir apenas mais uma na sua imensidão, nos seus trajetos, hoje não quero ter GPS, não quero saber para onde vou, mas quero ir. Deixe-me apenas ir.

Hoje I



Rotas são definidas pelo fluxo do dia; de veículos, ideias, humores, concessões, concepções, valores morais, monetários, horários. Eu não costumo trafegar pela cidade com prazer porque não concebo a condição básica da metrópole de trânsito-selva. Urbano por natureza, infeliz, traço sempre o mesmo trajeto, invariável, objeto de pavor instantâneo desde o momento do impulso inicial subsequente à inércia da incredulidade por ter que fazer o que eu nunca quis: lutar pra me locomover.

Apesar de contar com alguns primordiais aliados, como a natural perfeição corporal e motora, e um propulsor dotado de uma carcaça com algum conforto, o esboço do meu dia de idas e vindas se desenha, por via de regra, assustador. A ideia de selva faz-se mais nítida em dias chuvosos, em que vidros embaçados costumam confundir as descobertas de caminhos mais simples, de pensamentos mais retos. Como hoje, nada é mais presente do que o desejo de fuga pro ninho, pra cama, sozinho ou não. Não há água que apague o fogo dessa mente, desse estômago, e o âmago da questão não é o fogo, nem a água. É a fuga mesmo; é a medida do estrago.

Afago minhas taras: a malemolência e a indecência. Desço do pedestal de bom moço e me afogo na enxurrada de possibilidades de diversão barata. Ficar sem fazer nada não é opção, dados os inadiáveis compromissos; tudo isso corrobora para a vontade de algo compensatório a todo ódio-esforço. Ao fim do dia, torço para ter coragem de subverter a lei do mais forte e moral. Quero ser fraco, só por hoje, superficial, banal, acéfalo. Selvagem do intelecto, quero esquecer os faróis, me envolver nos lençóis, ignorar os sinais. Quero te abrigar da chuva, me molhar contigo ou sozinho.

E tu és qualquer uma, porque quero todas, ou nenhuma. Por hoje, só hoje, não quero te (re)conhecer. Quero sumir, jamais te assumir. Quero te consumir, a toda prova, com toda força, toda nova noite chuvosa.

Tu és cidade como todas as outras.

domingo, 26 de setembro de 2010

Poema número um.

Tem metros de idade essa fita
que agita o pulso; transforma
em avulso e momentâneo brilho
esparsas fagulhas; saem dos trilhos
todos os planos; explodem no ar
mal-explicados mundanos acertos,
levados com particular auxílio
de boas filtradas diversões.

Ocidentais direções em vários
cantos distantes do centro
de emoções - estas quase
orientalizadas - instintivamente
reprimidas; conclusivas máscaras,
medidas de segurança; palavras mansas
carregadas de dramatizadas falas;
balas perdidas de un fuego muy amigo.

Deixe-me dançar tua música, trançar
conceitos, rasgar trechos de pudor,
básico preceito de lisura, afrouxar
tua duras amarras de silenciosa dor,
identificar teu pseudo-secreto
louvor pela fina melancolia, predileção
pela tentadora luna, frente ao moroso
sol-do-dia, saboroso reflexo de nostalgia.

Eterno Domingo

Virando a esquina ela já percebeu algo diferente. Seus lábios ainda sentiam os dele e seu cheiro ainda estava no ar, ali dentro do seu carro, dentro dela. E na rua seguinte ela sentiu algo que até então era apenas uma idéia: ele chegara, definitivamente, ele estava aqui.

Mas, como não poderia deixar de ser, continuou seu caminho, indo para algum lugar que não lhe lembrasse quem ele era, um lugar que possuía toda a imensidão de quem ela era, um lugar em que ele não existe e nunca existiu. No caminho, ainda conseguia sentir toda aquela leveza, mas a deixava um pouco para trás a cada quilômetro rodado, a cada brisa que batia no seu rosto, com o mesmo carinho com que ele o fazia. E no farol, desconectada do seu destino e das suas ações já automáticas de ir e vir, sua memória lhe trazia as horas daquele dia, que ficavam mais distantes a medida que o sol ia sumindo no horizonte.

Ela estava parada há muito tempo, muito mais tempo do que gostaria, mais tempo do que havia se dado conta. Ela ficara parada, sem perceber o quanto havia feito, o quanto havia andado. Em círculos. Nada lhe fez sair do confortável local em que ficara durante a última década. Agora ela queria ser mais, tão mais, queria ser o que sempre sonhou, queria ter novos sonhos, novos destinos, novas lembranças.

Gostaria de se movimentar como os pássaros, voar por aí, sentir gostos diferentes, esperar a chuva cair, inundando sua vida sem pedir licença. Sentia vontade agora de acordar cedo e dormir tarde para não perder um momento sequer. Até então estava sem ação, seguindo a inércia da vida nessa metrópole que a movimentava involuntariamente por suas vielas, ruas e avenidas, por suas calçadas, seu trânsito. Seu transe.

Finalmente se movimentava. Um pouco por inércia ainda, mas definitivamente estava em movimento, mesmo sem saber para onde ia, ela tinha uma certeza: ele chegara. E ela fingia que ainda não havia se dado conta da liberdade de poder sentir. Aos poucos foi diminuindo a velocidade, estacionou o carro e andou até a porta da sua casa. Era noite, mas para ela aquele dia nunca terminaria.