quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Metrópolis


"Mittler zwischen Hirn und Händen muss das Herz sein"


Era mais do que uma simples noite paulistana, mais do que o simples encontrar e desencontrar de fantasmas velhos e novos. Aquela não se resumia apenas a uma noite sem estrelas. Aquela noite estava iluminada, com toda a luz que traz essa cidade encantada, toda a luz artificial que ilumina nossos sentimentos por vezes verdadeiros. Éramos todos ali, amor e encanto, dividindo a música, o som, a imagem, a bebida, as vozes, a nossa terra toda. Olhando todos para o céu, como a esperar que ele nos dissesse algo, mas ele permanecia mudo, sem qualquer som a não ser a belíssima música dos deuses que ali se reuniram para nos encantar - mudos também.
Nessa magnífica noite paulistana renasceu em todos nós um amor que não existe em palavras, um encanto que não tem cores, mas que colore a vida, que engrandece a alma. Estávamos todos gratos e felizes de estarmos ali, com a energia esgotada de um fim de semana, recarregando-a no contato com a terra úmida que retransmitia seu poder de cura e descoberta.
Naquela noite paulistana estávamos todos juntos, como a família que somos, com a família que criamos, com o amor que desperta e se divide, vez ou outra, em noites assim.

***

Maravilha é a riqueza
que não tem dono;
é a beleza compartilhada
da paisagem acariciada
pelos homens de bem.

Só se tem o que não
se toca; dado que tudo
o que é passível de posse,
não respeita o princípio
do prazer involuntário.

É otário quem busca ouro,
prata, quando o verdadeiro
tesouro está no sorriso alheio,
no recheio do bolo dado na boca,
e não na faca que o corta.

É torta a necessidade de compra
se a graça está na troca;
de vontade, olhares, sensações,
figurinhas, risadinhas, gargalhadas
d'alma livre, a céu aberto.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Choque.

Choco-me contigo e levo
choque de realidade
no corpo meu, tua mente,
e tu mentes quando diz
que não te chocas.

Choca-me a realidade,
mas também a fantasia;
choca-me o público
e o privado; o púdico,
o módico e o depravado.

Chocam-me as cores,
os brancos, os pretos,
os vermelhos, os amarelos,
os altos e baixos, sonoros,
barulhentos e quietos.

Chocam-me o piso e o teto,
o ferro, a madeira e o concreto
descaso com as vias morais
ou marginais; as vítimas fatais,
chocam-me os vícios mortais.

Chocam-me os efeitos colaterais,
os defeitos cruciais, os filmes
em cartaz, os feriados
nacionais, os funcionários
federais, os inúteis e os tais.

Chocam-me a ciência e a arte,
a paciência do covarde,
a intransigência e o alarde
desnecessário, o horário
do jogo, do sono; o engano.

Me chocas com tuas palavras
e teu mórbido silêncio,
tua falsa inocência;
a malemolência dos bons
que toca a incoerência.

***

Suas palavras me corroem, minha vida toda enferrujada e você com todas as suas mais cruéis verdades. Você simplesmente não percebe a profundidade rasa que conquistamos.  Tão confortável.

Tantas palavras assim jogadas, na verdade o que você procura é o choque? O novo no velho de todo dia? Entenda: Nada me choca, nada me diverte, nada me assusta, nada me faz questionar e sou feliz assim, qual é o sentido de ver tudo diferente, de ver o mundo como uma surpresa se tudo o que tenho aqui é o que preciso?

Pra quê te falaria tudo isso, se falar quebraria o silêncio entre nós, no qual me apego tanto, para o qual vivo todos os dias. E nada afeta a minha rotina de viver para você. De repente, como se tudo virasse de cabeça para baixo, como numa revolta muda, você se enraivesse com o mundo, comigo, com tudo o que está construído sobre nossa vida calculada.

O que me importa o que está ao meu redor, quando entro no meu apartamento e tudo o que tenho lá é o mais importante para mim? Nada mais me importa! Toda a desgraça no caminho é invisível aos meus olhos! Leio os jornais, fecho a página e tudo volta ao normal, ao meu normal. Entro no restaurante e o que vejo são cores lindas, luzes desenhadas para deixar as mulheres mais maquiadas e suas jóias mais brilhantes. E o que mais quero é esse brilho falso, de luzes desenhadas para mim. Isso é o que importa para mim, totalmente o contrário do que dizes: não me choco. Choca-se quem pensa. Eu apenas represento a inocência falsa de quem não enxerga.


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ontem.



Se o ontem não tivesse existido seria possível um novo hoje?

Seria possível sentir se o ontem não fosse vivo dentro de nós?

O amor poderia nascer pela primeira vez de novo?

E conseguiríamos ver novas cores no mesmo cinza de todos os dias?

O ontem, firme como tatuagem na pele, nos deixaria sentir como se nunca tivéssemos sentido?

O ontem morre a cada manhã que traz o mesmo sol de sempre ou ele continua indefinidamente, independente da estação do ano, das chuvas e das secas?

Nos seus olhos o ontem é um fardo que paralisa ou uma lição duramente aprendida e estudada, tornando possível errar novamente? É uma saudade ou uma vontade?


A ditadura do ontem é eterna ou conseguiremos um dia ser apenas hoje e acreditar que o ontem é intermitente e não perene dentro de nós?

***

Ontem, tudo parecia mais fácil. O caminho mais difícil era igual. Mas, o normal era mais palpável. Era mais amigável o dia; a noite, mais leve. O palco era menor e menos conhecido e o caminho, menos longo.

As relações, mais rasas. Era possível voar sem asas, planar, pousar com tempo ruim. Não tinha tempo ruim, na verdade. A falsidade era comum, mas trivial; não causava estranheza, nem ilusão. O coração batia forte e a bússola sempre apontava o norte. Não havia determinada direção, todas levavam a tudo o que se quer. Os ouvidos eram menos atentos, mas se ouvia mais. Os olhos, menos míopes, observavam mais. O paladar era mais vivo e menos aguçado. O tato experimentava tudo, mas sentia menos sabor. A paixão era mais diversão e menos dor.

Era mais fácil ser verdadeiro; muito mais difícil ser confiável. Ser amável não dependia de qualquer afago. Para ser bom, bastava saber fazer. Bem ou mal. A dúvida era banal, não uma questão filosófica, nem um trunfo. A competição era só por prazer, nunca por necessidade.

A cidade era lugar de estar. A fuga não era tão necessária. A luta era semestral, não diária.

Eu não me importava com as tuas roupas. Não me contentava com somente outra boca.

Ontem, eu não sabia te amar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O mito do eterno retorno

"O mito do eterno retorno afirma, por negação, que a vida que desaparece de uma vez por todas, que não volta mais, é semelhante a uma sombra , não tem peso, está morta por antecipação, e por mais atroz, mais bela, mais esplêncida que seja essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não têm o menor sentido. (...) Digamos, portanto, que a idéia de eterno retorno designa uma perspectiva de que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade."

Milan Kundera



Ele

O sorriso estático era o escudo contra a natural nudez de sentimentos que seu rosto, naturalmente, revelava. Afirmasse o que for, não conseguiria esconder a dor alheia que sentia por ela; sensação esta que, refletida, também doía nela e, como num jogo de bate-volta, parecia perpetuar-se na inércia de eventos irrelevantes à psiquê de cada um dos dois.

O impulso hedonista parecia franco, mas dentro dele soava muito mais como um ato de admiração teórica. A imperfeição da prática denota falta de aptidão e/ou experiência. Toda carência mal-curada, pensava ele, será castigada pela consciência. Daí, por mais sádica que possa parecer, a auto-afirmação completa só se consolidaria calcada em plena satisfação de sua íntima pulsão, ainda incoerente e desconhecida. Eros, Édipo, Narciso... Tantos ilustres convidados naquele mesmo salão.

O movimento não foi planejado, nem devidamente arquivado por ele em suas memórias. Mas a dança dos elementos mal-encarados de seu inconsciente com ela, seu objeto de desejo, foi como uma apunhalada em seu ego. Logo naquela noite, que ele havia se tornado todo ego! Parecia injusto, mas na hora pouco ou nada doeu.

Somente na interminável manhã seguinte ele se daria conta. Teria que carregá-lo ou acertar dívidas com o seu recente passado de excessos. Se arrependia de forma torta. Devia se arrepender de não ter confiado na mais clara manifestação de sua intuição, seu instinto. Toda essa energia deveria ter sido direcionada para o objeto, nesse caso, o sujeito: ela. Mas não, seu arrependimento não seria coerente, nem sua fala, nem seu desejo, nem sua vida. Para querer é preciso saber o que quer. E ele não sabia.


Ela

Ela ainda se lembrava, nitidamente, como se fosse hoje. Foi uma noite há tempos, uma noite sem estrelas como já se acostumara, uma noite sem brilho, mas iluminada sim - luzes não faltavam à sua volta.

Era tarde para ambos. Tarde para se buscar respostas, ela já ouvira todas, já as conhecia desde sempre, desde quando se lembrava. Apesar de hoje se lembrar de tanto, é uma noite que preferia esquecer. Na rua os carros passavam a toda velocidade, de madrugada, voando baixo, na sua cabeça apenas voavam, ouvi-se o barulho de aviões por toda parte, como se estivessem no meio de um fogo cruzado, e ainda por cima aquela música que até hoje a assustava.
 
Quando era pequena a música alta, que bate mais forte que o próprio coração, a assustava. Já havia fugido de lugares simplesmente porque não conseguia suportar aquela intensidade batendo dentro dela, como se fosse maior, como se pudesse fazer seu coração parar de tanto bater. Os seus sentidos se misturavam; sua respiração, descompassada. Mais tarde se acostumara com isso, mas ainda era um desconforto e algo que precisava equilibrar, controlando sua respiração para impedir que tudo dentro dela saísse do lugar.

Qual dia da semana, aquilo ela nunca se lembraria. Sua memória já não retém fatos cotidianamente banais. Aquela noite, no entanto, ficaria para sempre gravada e resolvera ali que poderia ser mesmo um sábado, apenas para que a história ficasse mais completa na sua própria cabeça. Era sábado, portanto, de madrugada, e ela buscava apenas a confirmação das suas respostas. E buscou-as nele, mesmo sabendo que não as teria, esperava que ele não as tivesse. Mas teve uma grande e desagradável surpresa: ele sabia mais.

Hoje estava no lugar que lhe trouxera as respostas, porque ela as buscava. Se continuasse naquela noite nunca as teria achado, ela pensou. Se continuasse com suas raízes cravadas naquele chão nunca as teria encontrado. Precisava de respostas novas, para perguntas já antigas, e então reformularia suas perguntas para incessantemente buscar outras respostas. Não queria as respostas prontas de todo-dia, de toda-gente, de toda sua vida. E ela fora atrás disso, para talvez voltar um dia. Para ele? Não sabia. Buscava apenas a si mesma e sabia que a encontraria mais cedo ou mais tarde.
 
Dali a alguns minutos seria possível ver os ônibus amanhecendo na cidade ainda calma. Era hora de voltar – este era, afinal, seu eterno retorno.


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

15 anos

Tem muito de fumaça toda essência. É combustão, explosão de cheiros, substâncias nocivas ao comportamento normal. “Muito loucos”, muitos sóbrios ventríloquos de carne e osso passeiam felizes pelo centro por terem o direito de obedecer ao seu deus, ao seu patrão, à sua ilusão de melhores dias, ao seu engodo de liberdade.

À margem, uma estatística. Sim, uma persona excluída, reduzida a número. A mais nova integrante do grupo a ser enquadrado no projeto de revitalização da cidade antiga. A inclusão de elementos físicos de um longínquo passado, extintos pelo desuso, e a faxina de jovens vidas, como esta, passageiras como a fumaça, os carros de tração motora.

Seria desesperadora a situação não fosse sua alucinógena alienação a tudo. Um forçado estado, desigual, por isso discriminado pela maioria; uma euforia vazia. Não há alicerce, não há vontade, comida, nem fome: não à vida é seu grito de guerra. Um protesto? Não, uma negação, abstenção. Valor algum faz-lhe sentido senão observar o externo de dentro pra dentro, com alguns espasmos de percepção coerente. Não há verdade maior do que a profunda incoerência de sermos todos tão semelhantes e, ainda assim, não nos relacionarmos como irmãos.



Hoje era seu aniversário, 15 anos de vida, se é que se podia chamar sua existência assim. A noite não iria ser introduzida à sociedade numa grande festa, ela teria sorte se conseguisse ter uma refeição, passar o dia sem ficar com fome ininterruptamente.

Acordara há alguns minutos com as vozes das pessoas que andavam na rua, da mulher que pisava forte no chão e reverberava um barulho ensurdecedor na sua dura cama. Era seu aniversário, mas nada naquele dia seria diferente de qualquer outro, ela nem se dava conta da importância daquilo. Quem não tem perspectiva do amanhã não se sente feliz nem triste de ver os dias passarem, os anos passarem, para ela não faria diferença ter 15 ou 16 anos, não faria diferença saber disso ou não. Não se sentiria mais feliz nem mais triste, simplesmente não sentiria.

Como qualquer outro dia já acordava com certa vontade de dormir novamente. Mas já não poderia mais, todos a sua volta já acordavam também e começavam a algazarra da manhã. Os mais novos reclamando de fome, ela também fora assim um dia, mas hoje já se acostumou a ter fome o tempo todo, era uma fome maior do que simplesmente vontade de comer, ela tinha fome de algo que não tinha nome. Havia dias que acordava sem fome alguma, porque sonhava a noite inteira que estava comendo, era uma mesa gigante com todo o tipo de comida, dessas que ela via nos restaurantes, carnes, batata-frita, tinha tudo isso, e tinha também a sua família, seus irmãos, seus avós, todos ali, ao redor da mesa, comendo com uma fome sem-fim.  Ela não sabia, mas tinha fome de viver, tinha fome de saudade, fome de chorar, fome de gargalhar. Ela ria, ria de tudo, mas só porque não sabia fazer outra coisa, não era uma gargalhada de quem sabe por que está feliz, de quem saber ser feliz. Sempre via garotas que andavam pelas ruas do centro e riam, felizes, ela não se via igual a elas, era como se viessem de planetas diferentes.

Era mais ou menos nessa hora do dia, logo depois de acordar que já começava a sentir algo vindo lá de dentro, de muito fundo. Era todo dia assim: desejava não ter acordado, desejava nunca mais ser obrigada a abrir os olhos, não via sentido em nada daquilo. Por que ela vivia daquele jeito, qual era o sentido de acordar todo dia? E aquilo que estava vindo crescia e ficava grande demais para os seus 15 anos, ela queria muito morrer. Sempre que ouvia sobre alguém que já havia conhecido e que morrera dava um sorriso, não ficava triste, pelo contrário, ela queria tanto morrer, simplesmente não precisar mais abrir os olhos.

Mas precisava abri-los todo dia e agradecer qualquer um que lhe desse algo para comer e para mergulhar num mundo que a fazia sair um pouco dessa insignificância. Quando dava um trago seu corpo inteiro era invadido por algo que ela, na sua existência, acreditava ser a felicidade; ela, se soubesse dar nome às coisas, daria o nome disso que sentia de amor. A fumaça dava para ela o quarto cor-de-rosa que ela nunca teve, trazia de volta a mãe que nunca a abandonara e ela imaginava sorridente que as pessoas na rua a viam, não ignoravam que ela estava ali, suja e mal encarada. As pessoas que passavam lhe sorriam, lhe davam bom dia e a convidavam para ter uma vida melhor, uma vida na qual ela não se arrependesse de abrir os olhos pela manhã.

E assim o dia passava rapidamente, de repente era noite e alguma coisa encontrava para comer, apenas pelo tempo suficiente de conseguir pegar no sono. Já devia ser muito tarde, mas ela não sabia ler as horas do relógio. Talvez fosse por isso que conseguia passar todos os dias, porque não estava realmente no seu corpo, porque ela era insignificante para ela mesma - que significância pode ter uma pessoa que nem sabe ver que horas são, ela pensava. Quando cansou de esperar que o sono viesse, deitou sua cabeça no jornal que trazia estampada a foto do prefeito em um evento de inauguração de algum projeto social da cidade. Ela não o reconheceu porque para sua vida ele não fazia diferença alguma – e vice-versa.