sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Sãos




Sã é a alma que levita
em tua turbulenta atmosfera;
sopro de impurezas que, sem força,
atinge o rosto-escudo de quem o absorve e,
com deleite, transforma toda agressão em prazer.

Sã é a tua vista, tão rara; quase uma conquista
em meio a arranha-céus, breus, véus de paisagem,
mosaicos, recortes, metais, papéis, réus-pedestres
surfando em tuas desgastadas faixas, selvagens
calçadas - ora secas, ora molhadas, sempre sujas.

Sempre tuas foram essas sãs personas, insistentes;
combatentes do dia-a-dia, e que ainda arrumam tempo
na covardia das horas vencidas, vendidas a preço
de casca de banana; insana forma de comércio da força
que tens de sobra p'ra dar, inspirar, transpirar.

Díficil é não pirar no teu dinamismo; não jogar fora
todo altruismo que resta daquela alma, antes citada,
e dela suprimir toda sanidade espiritual, toda textura
original. Tua pujança não é p'ra qualquer um; é p'ra
quem - como o José, o Antônio, a Paula - tem a mente sã.


***

Nossos encontros sempre foram casuais, apesar de termos um compromisso sério há anos, nos encontramos apenas em alguns fins de semana. Um sábado a noite estava andando pela Augusta e me deparei com ela, linda ali, vimos projeções em velhos prédios que ela conhece tão bem, esperei e ela me contou a história deles, de cada um.

Um dia também nos encontramos, era uma sexta-feira, fim de expediente, já não aguentava mais esperar para revê-la e fomos assistir a um filme juntas, numa sala de cinema quase vazia. Depois ainda escolhemos alguns livros para ler numa livraria ali do centro, livros de todas as línguas – ela sabe todas. Sabe falar qualquer coisa, em qualquer idioma. E por vezes também é muda, calada.

Numa tarde no parque Vila Lobos estávamos nós, caladas, as duas. Ouvindo um magnifico som que gentilmente foi colocado ali, especialmente para o nosso encontro. Ela me surpreende sempre, me levando para lugares que eu nunca conheci, cantos que nunca foram descobertos antes. Essa pelo menos é a impressão que tenho.

Cada vez mais percebo que chegou a hora de conhece-la melhor, decobri-la aos poucos, a cada dia, a cada esquina e cruzamento. Ela vai pegar na minha mão e vamos juntas buscar o que ela tem para me oferecer, para me mostrar, até ficar completamente nua na minha frente. Ela que tem tantas mascaras que carregam tantos segredos. Difícil saber sua verdadeira identidade.

Há algum tempo me mostrou o pôr-do-sol num domingo colorido, e a noite estávamos juntas num evento mágico, meus amigos, ela e eu – sendo ela a atração principal, como sempre é nos momentos em que se mostra inteira, complexa, sem tanta fumaça e ruídos desnecessários.

Crescemos juntas, eu, apenas uma pequena e insignificante parte de sua história, ela, dentro de mim como o sangue que corre nas minhas veias, e eu correndo sempre nas veias dela, com pressa, com frio, com sono, com pavor de perder a minha vida.

Chega mais perto a hora de estarmos juntas, apenas nós duas, silenciosas, descobrindo segredos que ninguém mais saberá,confidenciaremos num sussurro nossos mais belos poemas, como ela faz e fez com outros também. Não se pode dizer que seja fiel, ou que acredite em coisas tão temporais como a monogamia.

Andaremos juntas, cantaremos juntas. E eu aqui, mal posso esperar para abrir a porta e encontrá-la, minha querida São Paulo. Em muito breve serei sua, somente sua.






sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cuidado: frágil.

O susto é o reflexo da fragilidade. O surto psicótico, a exacerbação, nua, revelada. O frágil se denuncia em argumentos igualmente insustentáveis, desestruturados, ou simplesmente na ausência deles, no silêncio. O breu é o inferno do sujeito frágil.

Fragilidade não tem sexo, nem o faz. É um estado de espírito momentâneo, sem duração pré-estabelecida, de forma que, de uma hora pra outra, pode ser pra sempre. Morrer na fragilidade é o desespero de toda alma fragilizada.

Da noite pro dia se é, ou se está. Mas, o frágil não sabe se está ou se é. Simplesmente sente, vive em tensão constante, só esperando ser alvejado pela dura realidade. E ela vem cinza-urbana; rústica, forte, resistente. À realidade da metrópole, não há espaço para frágeis. Ela suga todo o brilho minguante e pinta de cinza. Pinta o ceú, pinta as idéias, anula a criatividade para o bem. Inunda de pensamentos negativos a já inoperante mente fragilizada.

No bojo: ira sem razão, erro sem perdão, auto-traição, prazer pela dor, destruição para si, para dar e vender. Desprezo ao espiritual, desgosto ao carnal. O frágil é azedo, amargo, fechado. São antagonismos fragilidade e carisma, amizade.

O frágil é sozinho, marginal, coitado. É magoado - e aí é que está: a fragilidade desmascara a índole.




Espatifou-se no chão, quebrando-se em mil pedaços. Alguns nunca mais poderiam ser achados e por isso perdia-se um pouco de si mesmo a cada queda. Prenunciava-a e deixava-se ali, prestes a alcançar o chão, esperando o momento de ver-se em muitos, de não ser mais apenas um. Permitia-se a fraqueza de não saber. Permitia-se esperar a força de reconstruir-se, mesmo sabendo que nunca seria inteiro novamente. Permaneceria frágil, teria ainda outros momentos em que iria preferir quebrar-se, em mil, em milhões, para não ser, nem estar. Até o momento de completar-se novamente, na busca sem-fim de suas partes já há tempos perdidas e escondidas. Para seguir, já então não mais prenunciando a queda, a fim apenas de esperá-la, porque era inevitável. Cairia novamente, e assim, sucessivamente, frágil e forte. Por vezes, robusto. Porém sempre quebradiço, por ser inevitável ser humano.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Mar

A idéia de mar é presente o tempo todo. De veículos, de planos de fuga, de horas mal-gastas, de despesas desnecessárias. De viagem: mergulho físico e imaginário. De fumaça de fora p'ra dentro e vice-versa.

Ondas de calor se alternam com mares de chuva cinza e danosa. O fluxo é prejudicado - de gente, palavras, olhares, paladares. A gastronomia da rotina não tem glamour; é antropofágica no pior sentido. Todos os sentidos são piores, na verdade.

Não faz sentido remar, quando o oceano parece infinito. A fé afoga a razão. E não há Poseidon que ajude a atravessar mais esse dia de ressaca moral, causada pela contínua auto-violência gratuita.




E desiste-se mais uma vez, mesmo antes de começar. Mas começar o que? Ando já sem rumo, pois me enganei novamente pensando que pudesse haver algum. Seria melhor continuar o caminho para casa, seja lá qual for. Durante o trajeto imagino que poderia estar com os pés no chão, na terra batida, talvez um pouco molhada da chuva desta manhã. Descalça sinto apenas o concreto. Frio e calculado, com calçadas que já há tempos estou acostumada a pisar.

Pouco a pouco a cidade vai se modificando. Já não é possível que se ouçam os barulhos cotidianos das buzinas e o cheiro sempre asfixiante da poluição. A cidade mudou: está verde e com suas curvas naturais. Não preciso virar a esquina delimitada, posso andar e seguir o rumo que preferir. Mas ainda sigo sem rumo e isso me incomoda profundamente. Tento então mergulhar fundo nas minhas memórias buscando o dia em que essa condição foi colocada dentro de mim. Por que não posso simplesmente ser, sem precisar necessariamente seguir um caminho definido? (mas não posso)

E então penso no mar, ah o mar! Está tão longe, mas sinto sua brisa vindo em minha direção, seu horizonte sem fim me traz a calma de que talvez não seja mesmo possível chegar a lugar nenhum e agora sei que é para lá que eu vou. Mais um pouco e estarei lá.

Olho para a imensidão azul à minha frente, com seu horizonte mais antigo do que a própria história do mundo, me convidando para explorá-lo. Ele vem até meus pés e me puxa. Empurro um pouco meu pequeno barco, dando impulso.  Carrego-o com tudo o que preciso: uma mala de incertezas, um pacote de vontades, um relógio que não marca as horas e uma bússola sem norte. As ondas mansas refletem o pouco de luz da nova manhã que chega. Esse é o meu caminho agora: meu e do mar. É certo que chegaremos em algum lugar, mesmo que seja lugar algum.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

do tempo I


O tempo urge no carro e o bate-bate das pulsações dá o ritmo do anda-e-para de tudo o que se configura importante à minha persona. Nuance hedonista? Talvez. O tempo, preciosa moeda de troca, molda a imediata razão.

O que antes trocaria fácil, hoje não troco por nada. Mal troco de roupa; mal sugo a polpa e nem mordo o fruto. Mal entro, já saio; mal levanto e já caio na rotina do minuto-a-minuto, prazer diminuto, tensão sustenida por motivos de sétima categoria à minha íntima canção de existência. Onde está a essência? Dentro dos fins-de-semana, dentro de ti, molhada de êxtase, na calada da noite, nem sempre quieta.

A dieta é racionada e pouco pensada; um pouco pesada. Não existe receita p'ra subsistir nessa selva. Nada fura o bloqueio de duras pedras, nem água mole. Tanto bate esse coração que já aprendeu a bater e apanhar. E gostar do que vê no cinza e vive no azul.
***

São 11 horas e todo o tempo já se foi. Todo o tempo que guardei no bolso já não está mais aqui. E eu achando que poderia guardá-lo em segredo. Senti-o sair de mim como uma brisa, como algo que está premeditado a ir embora, a não permanecer. Mas ele fica. Sempre está aqui. E mesmo assim passa, vai se esquivando, como se fizesse questão de não estar; faça o tempo parar? Faça até mesmo ele andar para trás? Mas andar...não, para andar é preciso que se ande para frente, numa imposição da natureza da qual nós, seres – às vezes até mesmo humanos demais – nunca iremos escapar. E o tempo, por estar submetido aos ponteiros em nossos pulsos, anda – sempre para frente, freneticamente. E por estar preso em nós, nos iludimos ao tentar controlar. Nós, que não aceitamos o passado, que não aceitamos olhar para trás, que viramos as costas e continuamos a andar. Mesmo ainda doendo; é impossível se arrepender. Por isso, andamos para frente, porque isso nos foi imposto, num tempo que não é possível mais lembrar. Andamos para frente, mesmo que seja para longe. E não ouse se importar com a dor, não ouse perceber o sofrimento. Não se engane. O tempo nunca nos daria o prazer de sua ausência. Por isso, vá sempre para longe, o tempo nunca aproxima, apenas afasta, apenas esquece. Dê tempo para esquecer, nunca para lembrar. Seja sempre a negação, dando as costas, nunca espere para ver, nunca espere. O tempo - ele sempre vai embora.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Metrópolis


"Mittler zwischen Hirn und Händen muss das Herz sein"


Era mais do que uma simples noite paulistana, mais do que o simples encontrar e desencontrar de fantasmas velhos e novos. Aquela não se resumia apenas a uma noite sem estrelas. Aquela noite estava iluminada, com toda a luz que traz essa cidade encantada, toda a luz artificial que ilumina nossos sentimentos por vezes verdadeiros. Éramos todos ali, amor e encanto, dividindo a música, o som, a imagem, a bebida, as vozes, a nossa terra toda. Olhando todos para o céu, como a esperar que ele nos dissesse algo, mas ele permanecia mudo, sem qualquer som a não ser a belíssima música dos deuses que ali se reuniram para nos encantar - mudos também.
Nessa magnífica noite paulistana renasceu em todos nós um amor que não existe em palavras, um encanto que não tem cores, mas que colore a vida, que engrandece a alma. Estávamos todos gratos e felizes de estarmos ali, com a energia esgotada de um fim de semana, recarregando-a no contato com a terra úmida que retransmitia seu poder de cura e descoberta.
Naquela noite paulistana estávamos todos juntos, como a família que somos, com a família que criamos, com o amor que desperta e se divide, vez ou outra, em noites assim.

***

Maravilha é a riqueza
que não tem dono;
é a beleza compartilhada
da paisagem acariciada
pelos homens de bem.

Só se tem o que não
se toca; dado que tudo
o que é passível de posse,
não respeita o princípio
do prazer involuntário.

É otário quem busca ouro,
prata, quando o verdadeiro
tesouro está no sorriso alheio,
no recheio do bolo dado na boca,
e não na faca que o corta.

É torta a necessidade de compra
se a graça está na troca;
de vontade, olhares, sensações,
figurinhas, risadinhas, gargalhadas
d'alma livre, a céu aberto.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Choque.

Choco-me contigo e levo
choque de realidade
no corpo meu, tua mente,
e tu mentes quando diz
que não te chocas.

Choca-me a realidade,
mas também a fantasia;
choca-me o público
e o privado; o púdico,
o módico e o depravado.

Chocam-me as cores,
os brancos, os pretos,
os vermelhos, os amarelos,
os altos e baixos, sonoros,
barulhentos e quietos.

Chocam-me o piso e o teto,
o ferro, a madeira e o concreto
descaso com as vias morais
ou marginais; as vítimas fatais,
chocam-me os vícios mortais.

Chocam-me os efeitos colaterais,
os defeitos cruciais, os filmes
em cartaz, os feriados
nacionais, os funcionários
federais, os inúteis e os tais.

Chocam-me a ciência e a arte,
a paciência do covarde,
a intransigência e o alarde
desnecessário, o horário
do jogo, do sono; o engano.

Me chocas com tuas palavras
e teu mórbido silêncio,
tua falsa inocência;
a malemolência dos bons
que toca a incoerência.

***

Suas palavras me corroem, minha vida toda enferrujada e você com todas as suas mais cruéis verdades. Você simplesmente não percebe a profundidade rasa que conquistamos.  Tão confortável.

Tantas palavras assim jogadas, na verdade o que você procura é o choque? O novo no velho de todo dia? Entenda: Nada me choca, nada me diverte, nada me assusta, nada me faz questionar e sou feliz assim, qual é o sentido de ver tudo diferente, de ver o mundo como uma surpresa se tudo o que tenho aqui é o que preciso?

Pra quê te falaria tudo isso, se falar quebraria o silêncio entre nós, no qual me apego tanto, para o qual vivo todos os dias. E nada afeta a minha rotina de viver para você. De repente, como se tudo virasse de cabeça para baixo, como numa revolta muda, você se enraivesse com o mundo, comigo, com tudo o que está construído sobre nossa vida calculada.

O que me importa o que está ao meu redor, quando entro no meu apartamento e tudo o que tenho lá é o mais importante para mim? Nada mais me importa! Toda a desgraça no caminho é invisível aos meus olhos! Leio os jornais, fecho a página e tudo volta ao normal, ao meu normal. Entro no restaurante e o que vejo são cores lindas, luzes desenhadas para deixar as mulheres mais maquiadas e suas jóias mais brilhantes. E o que mais quero é esse brilho falso, de luzes desenhadas para mim. Isso é o que importa para mim, totalmente o contrário do que dizes: não me choco. Choca-se quem pensa. Eu apenas represento a inocência falsa de quem não enxerga.


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ontem.



Se o ontem não tivesse existido seria possível um novo hoje?

Seria possível sentir se o ontem não fosse vivo dentro de nós?

O amor poderia nascer pela primeira vez de novo?

E conseguiríamos ver novas cores no mesmo cinza de todos os dias?

O ontem, firme como tatuagem na pele, nos deixaria sentir como se nunca tivéssemos sentido?

O ontem morre a cada manhã que traz o mesmo sol de sempre ou ele continua indefinidamente, independente da estação do ano, das chuvas e das secas?

Nos seus olhos o ontem é um fardo que paralisa ou uma lição duramente aprendida e estudada, tornando possível errar novamente? É uma saudade ou uma vontade?


A ditadura do ontem é eterna ou conseguiremos um dia ser apenas hoje e acreditar que o ontem é intermitente e não perene dentro de nós?

***

Ontem, tudo parecia mais fácil. O caminho mais difícil era igual. Mas, o normal era mais palpável. Era mais amigável o dia; a noite, mais leve. O palco era menor e menos conhecido e o caminho, menos longo.

As relações, mais rasas. Era possível voar sem asas, planar, pousar com tempo ruim. Não tinha tempo ruim, na verdade. A falsidade era comum, mas trivial; não causava estranheza, nem ilusão. O coração batia forte e a bússola sempre apontava o norte. Não havia determinada direção, todas levavam a tudo o que se quer. Os ouvidos eram menos atentos, mas se ouvia mais. Os olhos, menos míopes, observavam mais. O paladar era mais vivo e menos aguçado. O tato experimentava tudo, mas sentia menos sabor. A paixão era mais diversão e menos dor.

Era mais fácil ser verdadeiro; muito mais difícil ser confiável. Ser amável não dependia de qualquer afago. Para ser bom, bastava saber fazer. Bem ou mal. A dúvida era banal, não uma questão filosófica, nem um trunfo. A competição era só por prazer, nunca por necessidade.

A cidade era lugar de estar. A fuga não era tão necessária. A luta era semestral, não diária.

Eu não me importava com as tuas roupas. Não me contentava com somente outra boca.

Ontem, eu não sabia te amar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O mito do eterno retorno

"O mito do eterno retorno afirma, por negação, que a vida que desaparece de uma vez por todas, que não volta mais, é semelhante a uma sombra , não tem peso, está morta por antecipação, e por mais atroz, mais bela, mais esplêncida que seja essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não têm o menor sentido. (...) Digamos, portanto, que a idéia de eterno retorno designa uma perspectiva de que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade."

Milan Kundera



Ele

O sorriso estático era o escudo contra a natural nudez de sentimentos que seu rosto, naturalmente, revelava. Afirmasse o que for, não conseguiria esconder a dor alheia que sentia por ela; sensação esta que, refletida, também doía nela e, como num jogo de bate-volta, parecia perpetuar-se na inércia de eventos irrelevantes à psiquê de cada um dos dois.

O impulso hedonista parecia franco, mas dentro dele soava muito mais como um ato de admiração teórica. A imperfeição da prática denota falta de aptidão e/ou experiência. Toda carência mal-curada, pensava ele, será castigada pela consciência. Daí, por mais sádica que possa parecer, a auto-afirmação completa só se consolidaria calcada em plena satisfação de sua íntima pulsão, ainda incoerente e desconhecida. Eros, Édipo, Narciso... Tantos ilustres convidados naquele mesmo salão.

O movimento não foi planejado, nem devidamente arquivado por ele em suas memórias. Mas a dança dos elementos mal-encarados de seu inconsciente com ela, seu objeto de desejo, foi como uma apunhalada em seu ego. Logo naquela noite, que ele havia se tornado todo ego! Parecia injusto, mas na hora pouco ou nada doeu.

Somente na interminável manhã seguinte ele se daria conta. Teria que carregá-lo ou acertar dívidas com o seu recente passado de excessos. Se arrependia de forma torta. Devia se arrepender de não ter confiado na mais clara manifestação de sua intuição, seu instinto. Toda essa energia deveria ter sido direcionada para o objeto, nesse caso, o sujeito: ela. Mas não, seu arrependimento não seria coerente, nem sua fala, nem seu desejo, nem sua vida. Para querer é preciso saber o que quer. E ele não sabia.


Ela

Ela ainda se lembrava, nitidamente, como se fosse hoje. Foi uma noite há tempos, uma noite sem estrelas como já se acostumara, uma noite sem brilho, mas iluminada sim - luzes não faltavam à sua volta.

Era tarde para ambos. Tarde para se buscar respostas, ela já ouvira todas, já as conhecia desde sempre, desde quando se lembrava. Apesar de hoje se lembrar de tanto, é uma noite que preferia esquecer. Na rua os carros passavam a toda velocidade, de madrugada, voando baixo, na sua cabeça apenas voavam, ouvi-se o barulho de aviões por toda parte, como se estivessem no meio de um fogo cruzado, e ainda por cima aquela música que até hoje a assustava.
 
Quando era pequena a música alta, que bate mais forte que o próprio coração, a assustava. Já havia fugido de lugares simplesmente porque não conseguia suportar aquela intensidade batendo dentro dela, como se fosse maior, como se pudesse fazer seu coração parar de tanto bater. Os seus sentidos se misturavam; sua respiração, descompassada. Mais tarde se acostumara com isso, mas ainda era um desconforto e algo que precisava equilibrar, controlando sua respiração para impedir que tudo dentro dela saísse do lugar.

Qual dia da semana, aquilo ela nunca se lembraria. Sua memória já não retém fatos cotidianamente banais. Aquela noite, no entanto, ficaria para sempre gravada e resolvera ali que poderia ser mesmo um sábado, apenas para que a história ficasse mais completa na sua própria cabeça. Era sábado, portanto, de madrugada, e ela buscava apenas a confirmação das suas respostas. E buscou-as nele, mesmo sabendo que não as teria, esperava que ele não as tivesse. Mas teve uma grande e desagradável surpresa: ele sabia mais.

Hoje estava no lugar que lhe trouxera as respostas, porque ela as buscava. Se continuasse naquela noite nunca as teria achado, ela pensou. Se continuasse com suas raízes cravadas naquele chão nunca as teria encontrado. Precisava de respostas novas, para perguntas já antigas, e então reformularia suas perguntas para incessantemente buscar outras respostas. Não queria as respostas prontas de todo-dia, de toda-gente, de toda sua vida. E ela fora atrás disso, para talvez voltar um dia. Para ele? Não sabia. Buscava apenas a si mesma e sabia que a encontraria mais cedo ou mais tarde.
 
Dali a alguns minutos seria possível ver os ônibus amanhecendo na cidade ainda calma. Era hora de voltar – este era, afinal, seu eterno retorno.


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

15 anos

Tem muito de fumaça toda essência. É combustão, explosão de cheiros, substâncias nocivas ao comportamento normal. “Muito loucos”, muitos sóbrios ventríloquos de carne e osso passeiam felizes pelo centro por terem o direito de obedecer ao seu deus, ao seu patrão, à sua ilusão de melhores dias, ao seu engodo de liberdade.

À margem, uma estatística. Sim, uma persona excluída, reduzida a número. A mais nova integrante do grupo a ser enquadrado no projeto de revitalização da cidade antiga. A inclusão de elementos físicos de um longínquo passado, extintos pelo desuso, e a faxina de jovens vidas, como esta, passageiras como a fumaça, os carros de tração motora.

Seria desesperadora a situação não fosse sua alucinógena alienação a tudo. Um forçado estado, desigual, por isso discriminado pela maioria; uma euforia vazia. Não há alicerce, não há vontade, comida, nem fome: não à vida é seu grito de guerra. Um protesto? Não, uma negação, abstenção. Valor algum faz-lhe sentido senão observar o externo de dentro pra dentro, com alguns espasmos de percepção coerente. Não há verdade maior do que a profunda incoerência de sermos todos tão semelhantes e, ainda assim, não nos relacionarmos como irmãos.



Hoje era seu aniversário, 15 anos de vida, se é que se podia chamar sua existência assim. A noite não iria ser introduzida à sociedade numa grande festa, ela teria sorte se conseguisse ter uma refeição, passar o dia sem ficar com fome ininterruptamente.

Acordara há alguns minutos com as vozes das pessoas que andavam na rua, da mulher que pisava forte no chão e reverberava um barulho ensurdecedor na sua dura cama. Era seu aniversário, mas nada naquele dia seria diferente de qualquer outro, ela nem se dava conta da importância daquilo. Quem não tem perspectiva do amanhã não se sente feliz nem triste de ver os dias passarem, os anos passarem, para ela não faria diferença ter 15 ou 16 anos, não faria diferença saber disso ou não. Não se sentiria mais feliz nem mais triste, simplesmente não sentiria.

Como qualquer outro dia já acordava com certa vontade de dormir novamente. Mas já não poderia mais, todos a sua volta já acordavam também e começavam a algazarra da manhã. Os mais novos reclamando de fome, ela também fora assim um dia, mas hoje já se acostumou a ter fome o tempo todo, era uma fome maior do que simplesmente vontade de comer, ela tinha fome de algo que não tinha nome. Havia dias que acordava sem fome alguma, porque sonhava a noite inteira que estava comendo, era uma mesa gigante com todo o tipo de comida, dessas que ela via nos restaurantes, carnes, batata-frita, tinha tudo isso, e tinha também a sua família, seus irmãos, seus avós, todos ali, ao redor da mesa, comendo com uma fome sem-fim.  Ela não sabia, mas tinha fome de viver, tinha fome de saudade, fome de chorar, fome de gargalhar. Ela ria, ria de tudo, mas só porque não sabia fazer outra coisa, não era uma gargalhada de quem sabe por que está feliz, de quem saber ser feliz. Sempre via garotas que andavam pelas ruas do centro e riam, felizes, ela não se via igual a elas, era como se viessem de planetas diferentes.

Era mais ou menos nessa hora do dia, logo depois de acordar que já começava a sentir algo vindo lá de dentro, de muito fundo. Era todo dia assim: desejava não ter acordado, desejava nunca mais ser obrigada a abrir os olhos, não via sentido em nada daquilo. Por que ela vivia daquele jeito, qual era o sentido de acordar todo dia? E aquilo que estava vindo crescia e ficava grande demais para os seus 15 anos, ela queria muito morrer. Sempre que ouvia sobre alguém que já havia conhecido e que morrera dava um sorriso, não ficava triste, pelo contrário, ela queria tanto morrer, simplesmente não precisar mais abrir os olhos.

Mas precisava abri-los todo dia e agradecer qualquer um que lhe desse algo para comer e para mergulhar num mundo que a fazia sair um pouco dessa insignificância. Quando dava um trago seu corpo inteiro era invadido por algo que ela, na sua existência, acreditava ser a felicidade; ela, se soubesse dar nome às coisas, daria o nome disso que sentia de amor. A fumaça dava para ela o quarto cor-de-rosa que ela nunca teve, trazia de volta a mãe que nunca a abandonara e ela imaginava sorridente que as pessoas na rua a viam, não ignoravam que ela estava ali, suja e mal encarada. As pessoas que passavam lhe sorriam, lhe davam bom dia e a convidavam para ter uma vida melhor, uma vida na qual ela não se arrependesse de abrir os olhos pela manhã.

E assim o dia passava rapidamente, de repente era noite e alguma coisa encontrava para comer, apenas pelo tempo suficiente de conseguir pegar no sono. Já devia ser muito tarde, mas ela não sabia ler as horas do relógio. Talvez fosse por isso que conseguia passar todos os dias, porque não estava realmente no seu corpo, porque ela era insignificante para ela mesma - que significância pode ter uma pessoa que nem sabe ver que horas são, ela pensava. Quando cansou de esperar que o sono viesse, deitou sua cabeça no jornal que trazia estampada a foto do prefeito em um evento de inauguração de algum projeto social da cidade. Ela não o reconheceu porque para sua vida ele não fazia diferença alguma – e vice-versa.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Hoje II


Queria ter todo o tempo do mundo, todas as horas perdidas para conseguir te conhecer melhor, para não andar sempre com pressa por suas ruas esburacadas, por suas avenidas constantemente recapeadas. Hoje quero a sua calma de uma tarde chuvosa, como se isso não fosse acarretar em transtornos e inundações, quero andar sem destino por suas pontes enumeradas, que demonstram toda a sua impessoalidade, sua falta de personalidade. Com tudo misturado assim, uns andam com pressa, outros não andam, uns têm destino, obstinados sabem exatamente o que querem.

Hoje não. Hoje quero te conhecer por inteiro, quero saber quais são as suas mais íngremes curvas e as suas mais escorregadias descidas. Quero subir no ponto mais alto que se tem para olhá-la de cima e me sentir maior, pelo menos hoje, não queria me sentir apenas mais uma na sua imensidão, nos seus trajetos, hoje não quero ter GPS, não quero saber para onde vou, mas quero ir. Deixe-me apenas ir.

Hoje I



Rotas são definidas pelo fluxo do dia; de veículos, ideias, humores, concessões, concepções, valores morais, monetários, horários. Eu não costumo trafegar pela cidade com prazer porque não concebo a condição básica da metrópole de trânsito-selva. Urbano por natureza, infeliz, traço sempre o mesmo trajeto, invariável, objeto de pavor instantâneo desde o momento do impulso inicial subsequente à inércia da incredulidade por ter que fazer o que eu nunca quis: lutar pra me locomover.

Apesar de contar com alguns primordiais aliados, como a natural perfeição corporal e motora, e um propulsor dotado de uma carcaça com algum conforto, o esboço do meu dia de idas e vindas se desenha, por via de regra, assustador. A ideia de selva faz-se mais nítida em dias chuvosos, em que vidros embaçados costumam confundir as descobertas de caminhos mais simples, de pensamentos mais retos. Como hoje, nada é mais presente do que o desejo de fuga pro ninho, pra cama, sozinho ou não. Não há água que apague o fogo dessa mente, desse estômago, e o âmago da questão não é o fogo, nem a água. É a fuga mesmo; é a medida do estrago.

Afago minhas taras: a malemolência e a indecência. Desço do pedestal de bom moço e me afogo na enxurrada de possibilidades de diversão barata. Ficar sem fazer nada não é opção, dados os inadiáveis compromissos; tudo isso corrobora para a vontade de algo compensatório a todo ódio-esforço. Ao fim do dia, torço para ter coragem de subverter a lei do mais forte e moral. Quero ser fraco, só por hoje, superficial, banal, acéfalo. Selvagem do intelecto, quero esquecer os faróis, me envolver nos lençóis, ignorar os sinais. Quero te abrigar da chuva, me molhar contigo ou sozinho.

E tu és qualquer uma, porque quero todas, ou nenhuma. Por hoje, só hoje, não quero te (re)conhecer. Quero sumir, jamais te assumir. Quero te consumir, a toda prova, com toda força, toda nova noite chuvosa.

Tu és cidade como todas as outras.

domingo, 26 de setembro de 2010

Poema número um.

Tem metros de idade essa fita
que agita o pulso; transforma
em avulso e momentâneo brilho
esparsas fagulhas; saem dos trilhos
todos os planos; explodem no ar
mal-explicados mundanos acertos,
levados com particular auxílio
de boas filtradas diversões.

Ocidentais direções em vários
cantos distantes do centro
de emoções - estas quase
orientalizadas - instintivamente
reprimidas; conclusivas máscaras,
medidas de segurança; palavras mansas
carregadas de dramatizadas falas;
balas perdidas de un fuego muy amigo.

Deixe-me dançar tua música, trançar
conceitos, rasgar trechos de pudor,
básico preceito de lisura, afrouxar
tua duras amarras de silenciosa dor,
identificar teu pseudo-secreto
louvor pela fina melancolia, predileção
pela tentadora luna, frente ao moroso
sol-do-dia, saboroso reflexo de nostalgia.

Eterno Domingo

Virando a esquina ela já percebeu algo diferente. Seus lábios ainda sentiam os dele e seu cheiro ainda estava no ar, ali dentro do seu carro, dentro dela. E na rua seguinte ela sentiu algo que até então era apenas uma idéia: ele chegara, definitivamente, ele estava aqui.

Mas, como não poderia deixar de ser, continuou seu caminho, indo para algum lugar que não lhe lembrasse quem ele era, um lugar que possuía toda a imensidão de quem ela era, um lugar em que ele não existe e nunca existiu. No caminho, ainda conseguia sentir toda aquela leveza, mas a deixava um pouco para trás a cada quilômetro rodado, a cada brisa que batia no seu rosto, com o mesmo carinho com que ele o fazia. E no farol, desconectada do seu destino e das suas ações já automáticas de ir e vir, sua memória lhe trazia as horas daquele dia, que ficavam mais distantes a medida que o sol ia sumindo no horizonte.

Ela estava parada há muito tempo, muito mais tempo do que gostaria, mais tempo do que havia se dado conta. Ela ficara parada, sem perceber o quanto havia feito, o quanto havia andado. Em círculos. Nada lhe fez sair do confortável local em que ficara durante a última década. Agora ela queria ser mais, tão mais, queria ser o que sempre sonhou, queria ter novos sonhos, novos destinos, novas lembranças.

Gostaria de se movimentar como os pássaros, voar por aí, sentir gostos diferentes, esperar a chuva cair, inundando sua vida sem pedir licença. Sentia vontade agora de acordar cedo e dormir tarde para não perder um momento sequer. Até então estava sem ação, seguindo a inércia da vida nessa metrópole que a movimentava involuntariamente por suas vielas, ruas e avenidas, por suas calçadas, seu trânsito. Seu transe.

Finalmente se movimentava. Um pouco por inércia ainda, mas definitivamente estava em movimento, mesmo sem saber para onde ia, ela tinha uma certeza: ele chegara. E ela fingia que ainda não havia se dado conta da liberdade de poder sentir. Aos poucos foi diminuindo a velocidade, estacionou o carro e andou até a porta da sua casa. Era noite, mas para ela aquele dia nunca terminaria.