sexta-feira, 1 de outubro de 2010

15 anos

Tem muito de fumaça toda essência. É combustão, explosão de cheiros, substâncias nocivas ao comportamento normal. “Muito loucos”, muitos sóbrios ventríloquos de carne e osso passeiam felizes pelo centro por terem o direito de obedecer ao seu deus, ao seu patrão, à sua ilusão de melhores dias, ao seu engodo de liberdade.

À margem, uma estatística. Sim, uma persona excluída, reduzida a número. A mais nova integrante do grupo a ser enquadrado no projeto de revitalização da cidade antiga. A inclusão de elementos físicos de um longínquo passado, extintos pelo desuso, e a faxina de jovens vidas, como esta, passageiras como a fumaça, os carros de tração motora.

Seria desesperadora a situação não fosse sua alucinógena alienação a tudo. Um forçado estado, desigual, por isso discriminado pela maioria; uma euforia vazia. Não há alicerce, não há vontade, comida, nem fome: não à vida é seu grito de guerra. Um protesto? Não, uma negação, abstenção. Valor algum faz-lhe sentido senão observar o externo de dentro pra dentro, com alguns espasmos de percepção coerente. Não há verdade maior do que a profunda incoerência de sermos todos tão semelhantes e, ainda assim, não nos relacionarmos como irmãos.



Hoje era seu aniversário, 15 anos de vida, se é que se podia chamar sua existência assim. A noite não iria ser introduzida à sociedade numa grande festa, ela teria sorte se conseguisse ter uma refeição, passar o dia sem ficar com fome ininterruptamente.

Acordara há alguns minutos com as vozes das pessoas que andavam na rua, da mulher que pisava forte no chão e reverberava um barulho ensurdecedor na sua dura cama. Era seu aniversário, mas nada naquele dia seria diferente de qualquer outro, ela nem se dava conta da importância daquilo. Quem não tem perspectiva do amanhã não se sente feliz nem triste de ver os dias passarem, os anos passarem, para ela não faria diferença ter 15 ou 16 anos, não faria diferença saber disso ou não. Não se sentiria mais feliz nem mais triste, simplesmente não sentiria.

Como qualquer outro dia já acordava com certa vontade de dormir novamente. Mas já não poderia mais, todos a sua volta já acordavam também e começavam a algazarra da manhã. Os mais novos reclamando de fome, ela também fora assim um dia, mas hoje já se acostumou a ter fome o tempo todo, era uma fome maior do que simplesmente vontade de comer, ela tinha fome de algo que não tinha nome. Havia dias que acordava sem fome alguma, porque sonhava a noite inteira que estava comendo, era uma mesa gigante com todo o tipo de comida, dessas que ela via nos restaurantes, carnes, batata-frita, tinha tudo isso, e tinha também a sua família, seus irmãos, seus avós, todos ali, ao redor da mesa, comendo com uma fome sem-fim.  Ela não sabia, mas tinha fome de viver, tinha fome de saudade, fome de chorar, fome de gargalhar. Ela ria, ria de tudo, mas só porque não sabia fazer outra coisa, não era uma gargalhada de quem sabe por que está feliz, de quem saber ser feliz. Sempre via garotas que andavam pelas ruas do centro e riam, felizes, ela não se via igual a elas, era como se viessem de planetas diferentes.

Era mais ou menos nessa hora do dia, logo depois de acordar que já começava a sentir algo vindo lá de dentro, de muito fundo. Era todo dia assim: desejava não ter acordado, desejava nunca mais ser obrigada a abrir os olhos, não via sentido em nada daquilo. Por que ela vivia daquele jeito, qual era o sentido de acordar todo dia? E aquilo que estava vindo crescia e ficava grande demais para os seus 15 anos, ela queria muito morrer. Sempre que ouvia sobre alguém que já havia conhecido e que morrera dava um sorriso, não ficava triste, pelo contrário, ela queria tanto morrer, simplesmente não precisar mais abrir os olhos.

Mas precisava abri-los todo dia e agradecer qualquer um que lhe desse algo para comer e para mergulhar num mundo que a fazia sair um pouco dessa insignificância. Quando dava um trago seu corpo inteiro era invadido por algo que ela, na sua existência, acreditava ser a felicidade; ela, se soubesse dar nome às coisas, daria o nome disso que sentia de amor. A fumaça dava para ela o quarto cor-de-rosa que ela nunca teve, trazia de volta a mãe que nunca a abandonara e ela imaginava sorridente que as pessoas na rua a viam, não ignoravam que ela estava ali, suja e mal encarada. As pessoas que passavam lhe sorriam, lhe davam bom dia e a convidavam para ter uma vida melhor, uma vida na qual ela não se arrependesse de abrir os olhos pela manhã.

E assim o dia passava rapidamente, de repente era noite e alguma coisa encontrava para comer, apenas pelo tempo suficiente de conseguir pegar no sono. Já devia ser muito tarde, mas ela não sabia ler as horas do relógio. Talvez fosse por isso que conseguia passar todos os dias, porque não estava realmente no seu corpo, porque ela era insignificante para ela mesma - que significância pode ter uma pessoa que nem sabe ver que horas são, ela pensava. Quando cansou de esperar que o sono viesse, deitou sua cabeça no jornal que trazia estampada a foto do prefeito em um evento de inauguração de algum projeto social da cidade. Ela não o reconheceu porque para sua vida ele não fazia diferença alguma – e vice-versa.

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