terça-feira, 5 de outubro de 2010

O mito do eterno retorno

"O mito do eterno retorno afirma, por negação, que a vida que desaparece de uma vez por todas, que não volta mais, é semelhante a uma sombra , não tem peso, está morta por antecipação, e por mais atroz, mais bela, mais esplêncida que seja essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não têm o menor sentido. (...) Digamos, portanto, que a idéia de eterno retorno designa uma perspectiva de que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade."

Milan Kundera



Ele

O sorriso estático era o escudo contra a natural nudez de sentimentos que seu rosto, naturalmente, revelava. Afirmasse o que for, não conseguiria esconder a dor alheia que sentia por ela; sensação esta que, refletida, também doía nela e, como num jogo de bate-volta, parecia perpetuar-se na inércia de eventos irrelevantes à psiquê de cada um dos dois.

O impulso hedonista parecia franco, mas dentro dele soava muito mais como um ato de admiração teórica. A imperfeição da prática denota falta de aptidão e/ou experiência. Toda carência mal-curada, pensava ele, será castigada pela consciência. Daí, por mais sádica que possa parecer, a auto-afirmação completa só se consolidaria calcada em plena satisfação de sua íntima pulsão, ainda incoerente e desconhecida. Eros, Édipo, Narciso... Tantos ilustres convidados naquele mesmo salão.

O movimento não foi planejado, nem devidamente arquivado por ele em suas memórias. Mas a dança dos elementos mal-encarados de seu inconsciente com ela, seu objeto de desejo, foi como uma apunhalada em seu ego. Logo naquela noite, que ele havia se tornado todo ego! Parecia injusto, mas na hora pouco ou nada doeu.

Somente na interminável manhã seguinte ele se daria conta. Teria que carregá-lo ou acertar dívidas com o seu recente passado de excessos. Se arrependia de forma torta. Devia se arrepender de não ter confiado na mais clara manifestação de sua intuição, seu instinto. Toda essa energia deveria ter sido direcionada para o objeto, nesse caso, o sujeito: ela. Mas não, seu arrependimento não seria coerente, nem sua fala, nem seu desejo, nem sua vida. Para querer é preciso saber o que quer. E ele não sabia.


Ela

Ela ainda se lembrava, nitidamente, como se fosse hoje. Foi uma noite há tempos, uma noite sem estrelas como já se acostumara, uma noite sem brilho, mas iluminada sim - luzes não faltavam à sua volta.

Era tarde para ambos. Tarde para se buscar respostas, ela já ouvira todas, já as conhecia desde sempre, desde quando se lembrava. Apesar de hoje se lembrar de tanto, é uma noite que preferia esquecer. Na rua os carros passavam a toda velocidade, de madrugada, voando baixo, na sua cabeça apenas voavam, ouvi-se o barulho de aviões por toda parte, como se estivessem no meio de um fogo cruzado, e ainda por cima aquela música que até hoje a assustava.
 
Quando era pequena a música alta, que bate mais forte que o próprio coração, a assustava. Já havia fugido de lugares simplesmente porque não conseguia suportar aquela intensidade batendo dentro dela, como se fosse maior, como se pudesse fazer seu coração parar de tanto bater. Os seus sentidos se misturavam; sua respiração, descompassada. Mais tarde se acostumara com isso, mas ainda era um desconforto e algo que precisava equilibrar, controlando sua respiração para impedir que tudo dentro dela saísse do lugar.

Qual dia da semana, aquilo ela nunca se lembraria. Sua memória já não retém fatos cotidianamente banais. Aquela noite, no entanto, ficaria para sempre gravada e resolvera ali que poderia ser mesmo um sábado, apenas para que a história ficasse mais completa na sua própria cabeça. Era sábado, portanto, de madrugada, e ela buscava apenas a confirmação das suas respostas. E buscou-as nele, mesmo sabendo que não as teria, esperava que ele não as tivesse. Mas teve uma grande e desagradável surpresa: ele sabia mais.

Hoje estava no lugar que lhe trouxera as respostas, porque ela as buscava. Se continuasse naquela noite nunca as teria achado, ela pensou. Se continuasse com suas raízes cravadas naquele chão nunca as teria encontrado. Precisava de respostas novas, para perguntas já antigas, e então reformularia suas perguntas para incessantemente buscar outras respostas. Não queria as respostas prontas de todo-dia, de toda-gente, de toda sua vida. E ela fora atrás disso, para talvez voltar um dia. Para ele? Não sabia. Buscava apenas a si mesma e sabia que a encontraria mais cedo ou mais tarde.
 
Dali a alguns minutos seria possível ver os ônibus amanhecendo na cidade ainda calma. Era hora de voltar – este era, afinal, seu eterno retorno.


Nenhum comentário:

Postar um comentário